(foto: carlos silva)
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DEIXA QUE EU TE TOQUE O MEDO
Deixa que eu te toque o medo,
o gesto infantil de um gesto adulto.
Lancina-me; eu te ofereço o choro recém-nascido
neste poema, território expatriado até de temores.
Há poemas que tudo desperdiçam: por exemplo, crianças.
Deixe que eu te salve, ao menos, um menino.
Eu que rebento a cara na tradição das pedras - Sophias águas;
que não desisto de profanar oceanos;
que me abro como um mar perante Moisés.
Deixa que entregue os frutos para as setas;
alimente o cheiro, ardor da fome
em meio a bicadas, a flechas;
que desperdice o fruto: um beijo que não vinga,
um sangue ausente, um poema -
pássaro de espuma sobrevoando meu silêncio,
sob a senda feroz de minhas gerações; não verei.
Porque tive muita fome e me dei de comer;
porque sou carne para a alma;
tanta alma para a carne.
Rebusca abrigo, ódios não refrearão;
o amor é só uma gruta,
mas descende das formas que origina.
Havíamos combinado o reduto escuro: não temas
minhas mãos, de imaginar, não chegam ao corpo.
Então ouso a língua pátria, perfurando a boca da mãe;
o artista toca a escrita, enquanto o mundo é oficina;
as meninas estampam seus risos de esculpidas.
Eu me recosto à pedra, reduto escuro, não temas,
deixa que eu te toque o medo.
A mim, basta retomar a vida a rebordo
de um barco em que me bebam ar e proa.
Depois de naufragar, resta pouco mais da morte;
multiplico o abandono de nascer.
Não há o que não possa ser amado,
não há tempo que esconda este tempo.
Enquanto a vida se esvai em ondas,
sal do ignoto, sou o que há de vir.
Acordo tua cidade de palavras;
o vento aduaneiro entrega-nos a maresia.
Quantas vezes, quantas vezes dizer: o mar!
Minha alegria encharcada deste nada,
condicionada a nada, branda euforia,
gemendo espectros e prismas
por hordas dissolvidas de cores
e mãos intocadas.
Deixa que penetre o transe,
fluido repetir:
ser esta morte em medo viva,
tombando como um forte
(sempre imaginei que o forte à praia de minha infância
pudesse ser tombado
pela força de menina).
Que o forte caia ao sonho humano,
mar de tantos mares;
que o medo negue o medo,
para que sejamos
idas velas da incerteza,
içadas ao devir,
rasgando-se nas pedras.
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Roberta Tostes Daniel