29 de maio de 2012

os muros

(foto: carlos silva)

***


OS MUROS

"O Exército de Estados Unidos difundiu un informe de 2.500 páxinas que, entre outras cousas, relata que os soldados norteamericanos simularon fusilamentos de prisioneiros".

Os muros
non entenden de enganos.
Todo o que ante eles sucede é para eles certo
porque non teñen máis mirada
ca os seus brazos.

Os muros
malia non ter ollos
saben chorar, amargos,
un pranto de óxido
por todos aqueles que, tendo ollar,
non queren saber do terror
que o mundo asolaga.

Os muros
son silenciosos na mágoa
non falar é a súa esencia
o obxecto co que foron erguidos:
"gardaredes os segredos desta casa".
Sen ollos e sen boca
só poden sufrir certamente
abrindo fendas na alma.


*



26 de maio de 2012

cena 54

(foto: carlos silva)

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Todos os actos de amor são diferentes. Todos os actos variam.

Agora, finalmente, está tudo pronto. A claquete está pronta para a cena 54, take 1: aquilo que não é uma piscina (“E no início deste mês, o governo solicitou candidaturas de investidores interessados na compra de piscinas pertencentes a propriedades retiradas a Fannie Mae, Freddie Mac e à Administração Federal da Habitação”); aquilo que não é uma casa de campo com cavalos, uma cavalariça, uma casa de cavalos, mas sim um momento de cavalos (“en que la yerba / crece en la memoria”); aquilo que não é um templo em honra de Pliohippus, o primeiro cavalo, a comer folhas no Máximo Termal de Paleoceno-Eoceno e a ficar lentamente cada vez mais pequeno. O que vemos é um museu para um telhado. Ou será o telhado a fantasia perfeita, uma canção mesmo, para a resistência excêntrica do dois-por-quatro? O que estará do outro lado da sua inclinação, o que será a sua inclinação? Apenas outro tormento de disciplina. Tábuas de abrigo apoiadas por vergas, todas juntas para cantar pela sua ceia. Algumas adorariam flutuar num rio e aí se tornar madeira à deriva. O telhado intacto é composto pelas telhas do nosso descontentamento ou, antes, da nossa conveniência, colocadas numa fundação que é coroada por pedestais, as leis-base da justiça. O cavalo que não esteve lá sabe que o gesto do espanto – a boca aberta de Sócrates ou a boca falante de um cavalo – fará diferença na mudança do mundo, irá ditar o tempo.

“Ainda hoje a terra treme.”

Por outro lado, gostaria de aqui ficar, a trocar pontos de vista sobre esta meditação acerca da madeira, absorto no humilde e no abençoado, arrebatada pelo que é impossivelmente pitoresco. (Porque é que nos interessamos pela beleza quando os prazeres são uma imprudência da agonia?) Quem é que se está a convencer com este estádio do amor, da leitura entre as tábuas de um clube de cães tornadas monumento e os elementos que eu também gostaria de reconhecer e considerar? Mas eu nunca imaginei aquilo que é óbvio à medida que nos aproximamos da cena a preto e branco. Se não construirmos um farol devido à falta de um oceano, é apenas natural na terra, perto da hera e da madeira, quando a luz e a sombra de uma torre indigente traçam uma assinatura embelezada de alarmes – longe do doméstico, mas possuidora de qualidades inerentes que relembram habitações. Para o crime, a memória, uma história que “(aquí, ahora) no tiene sentido, no tiene destino.”. Poderíamos aprender com Kafka – nós podemos atravessar a porta e ver o que vem a seguir, por cima e por baixo das fundações de pedra, o vestibular santificado na luz do dia, ar fresco onde os cães ladraram. Assim o parece à nossa certeza…

Conseguem encontrar o… princípe sapo? A família dos esquilos? O poço da solidão? O mito da memória que permanece obscuro? Conseguem ver a dura etiqueta de um número que  levita? Já leram o Guia dos Perplexos de Maimonides? Era esta aparência desdentada de uma porta a entrada para as quatro paredes que rodeiam uma fonte ou, de uma forma igualmente preciosa, uma escola ou uma casa de culto para os escravos e seus filhos – tudo o que é exaltado para permanecer escondido? Eu irei, finalmente, transpor esta vedação, tal como Fontaine o fez da cela nr 107 no Forte Monteluc onde ele desmantelou a porta, tábua a tábua, e escapou! A guerra está no outro lado de todos nós.

A luz é tudo que existe.

A coup de foudre. (Um toque de trovão) Quando não há amor à primeira vista, lembramo-nos dos elementos (para os pensadores de Upanixade, o verdadeiro sacrifício do cavalo [aśvamedha] foi obtido através da percepção da identidade das partes deste sacrifício e do universo). As hierarquias são feias – elas são antigas. Mas também o é a liberdade. Porquê chamá-la de arruinada? Uma angústia deste tipo é demasiado recente. Chamamos-lhe uma imagem em movimento (em câmara lenta). Mas porque não chamar-lhe um edifício? Poderá estar correcto chamar-lhe útil. Se pensarmos nesta barraca baloiçante, mas elegantemente nobre, como uma morada para a arte, isso deve-se à sua beleza e inclinação, a sua inclinação para a frente, no seu desejo animal espelhado (recompensado através da polis arquitectural do Edifício Dançante em Praga) é como se fosse algo oracular, mas sem palavras – aquilo a que poderíamos chamar de espectacular. Do outro lado, por trás da antecâmara, seguindo o mito e história, encontra-se o templo da abóbada que não necessita de um telhado de telhas por direito: um local de casamento (“o que Deus uniu, o Homem não deve separar.”)

Quem diria que o prazer não é útil?

Pergunto-me se estarei a construir um monumento a partir de um destroço. Onde a madeira se move, deveria haver fogo. Mas eu imaginei o futuro à luz do passado. Isto é um edifício sem destino e não uma cabine abandonada sobre pernas partidas de pedra (duas pernas de pedra vastas e sem tronco / permanecem no deserto). Esta é a voz de um poço de solidão, templo para o que é constitucional, monumento ao vento, à chuva, ao sol. E se eu estiver certa, estou errada. E se eu estou errada…

Havia uma velha mulher
Que vivia num sapato.
Tinha tantos filhos
Que não sabia o que fazer.

Estas tábuas, conhecidas e estranhas, levantam o telhado. Não possuo nada. Alta como um animal, baixa como um animal: “Um cavalo é um cavalo, claro, claro. E ninguém pode falar com um cavalo, claro, a não ser que, claro, o cavalo, claro, seja o famoso Mr Ed!” Se menosprezamos o cavalo, fazemos mais do que nos relegar aos fantasmas, inquietos numa eternidade a caminhar pelas tábuas. Aqui está um registo de escape. Desejo olhar para o outro lado. Não posso olhar. Tenho de olhar. Tenho de ver aquilo que está mesmo à minha frente. Comparações de memória sobre o tempo na graça é o espaço do lugar.

Não é estranhamente invulgar que o local onde não me pude refugiar contribui para uma imagem na qual eu devo refugiar-me.

Como se eu soubesse que esta barraca que está a inclinar-se insistentemente para o lado oeste (ou estará a virar-se noutra direcção?) não é qualquer tipo de defesa para um poço de água de nascente, mas uma cavalariça de um cavalo em particular. Mas eu apenas sei que este local é do cavalo. “De acordo com uma história que tem sido transmitida, Deus criou o cavalo árabe a partir de uma mão-cheia de vento. Na tradição árabe, as éguas são mais estimadas que os machos e muito poetas cantaram os louvores destas “filhas do vento”.

Quando os nomes são ao acaso, arbitrários, contingentes para as tábuas das paredes da casa, para o cavalo, que podem ter sido abrigados dentro dela quando não era a casa de uma cria, quando, uma vez, a porta cabia e era própria, sob o charme, digamos, da ferradura, poderá haver um bordo – uma prancha até – onde a vida se inicia: a entrada para um mistério. Porque será que este telhado ainda está de pé? (qual o significado de tudo isto?) Paus e pedras podem quebrar os meus ossos, mas os nomes nunca hão-de me ferir.

Onde e quando chegarei eu, escaparei do choro e não me inclinarei sobre ti? Tento e falho ao atirar estes velhos sapatos quadrados, estas botas Prada com buracos relativamente mais pequenos do que as falhas na porta da estrutura inclinada, que manifestam orgulho, ignorância, pobreza, mistério, obscenidade ou curiosidade – estas botas são feitas de pele e não servem mais. Eu uso-as para honrar a perda da vida, e a morte é o valor extra do que elas me recordam. Pior, uma indulgência numa imperfeição estudada. E lamento pois não me sinto mais confortável nelas a maior parte do tempo. E torno-me um pouco perversa e uso-as quase sempre para que os buracos aumentem depressa e finalmente, espero, passem a parecer algo da natureza que não possa ser usado –  que possam deixar de ser usadas brevemente,  que possam ser inúteis. Susie, querida Susie, o que há de novo? Os gansos andam descalços porque não têm sapatos. Talvez eu me sinta forte ou certa o suficiente para dizer a mim própria, sem ritual ou revelação ou desastre natural: irei tremer nas minhas botas. Para que interessa, afinal de contas, um nome para estes: hipparions, cavalos ibéricos, mustangs, cães, cavalos das estepes, …

Ainda agora a terra está a tremer, disse um sobrevivente do tsunami, a sua cidade uma praia de erva onde apenas as casas maiores são carapaças, sombras do que eram anteriormente.

“Acredito mesmo que, tal como um animal, posso dirigir-me aos poderes que existem” - escrevi-o numa carta que nunca te enviei. Como é que nos libertamos do objectivo correlativo do choro a não ser ao renunciarmos à culpa estranhamente histórica e irremediável – ou será mitológica? – tendo tendência para a parede de marfim por baixo da vedação em cadeia no Oeste, a norte da floresta, sendo humildes como se fosse, dentro do suspiro, a oportunidade da vida? As filhas do vento recordam-nos que conseguimos voar. Esta casa de hóspedes de través, sem alicerces, é aquilo que troca os elementos sem um cavalo, sem uma fonte, e que nos repreende para que possamos esquecer para lembrar.


*
susan pensak
(original aqui)

 ...
[tradução: lurdes fonseca]

23 de maio de 2012

A questão é essa mesmo: não somos nada!

(foto: carlos silva)

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A questão é essa mesmo: não somos nada! Que somos nós? Um piscar de olhos. Minúsculas partículas… Pó cósmico, não é o que se costuma dizer? Minúsculas partículas perdidas no meio de biliões de outras pequenas partículas... e esses biliões de partículas habitam numa estrela em tudo igual a biliões de outras estrelas. Vês essa camada de pó aí no tablier? É como se fosse uma pequena nação. E nós? Uma dessas partículas. Quase invisíveis! E agora varro com a mão este aglomerado de pó... e assim desaparece uma nação e assim desaparecem seus habitantes. Agora sacudo as mãos para me livrar do pó. Voilà!
E mediante isto, ficas tu escandalizado por eu ter ‘arrumado’ um gajo. Ruanda? Conheces? É- te familiar o nome? Antes de tomares o pequeno-almoço, dezenas de crianças eram chacinadas. Não ouvi da tua parte qualquer frase reveladora de empatia, qualquer comentário sequer. E enches-me os ouvidos por eu ter fechado os olhos a um polícia gorducho!...

E a placenta rebentou! O momento era chegado! Nove meses de ansiedades, semanas de preparação, a placenta ao rebentar retirou-lhe o baralho das mãos, remisturando as cartas até então meticulosamente ordenadas. Sentiu-se como levado pela corrente de um rio – e era uma sensação tão ou maís física do que mental. Sentiu que todo o auto-controle, todas as convocatórias anunciadas a todos os recantos do seu corpo, eram coisa pouca perante aquilo. Olhou lá para fora pela única janela das redondezas. O sol pareceu-lhe maior.

Hugo Nascimento Veloso


20 de maio de 2012

La vida secreta de las piedras

(foto: carlos silva)

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La vida secreta de las piedras


CUANDO las miro, noto que me devuelven la mirada. Cuando las toco, también ellas me tocan. Cuando les hablo, estoy seguro de que me escuchan y me comprenden.

A pesar de todo, nunca he considerado a las piedras como objetos inanimados. Siempre he apreciado en ellas las cualidades de los seres vivos.

Por eso me fascina la visión de estos capiteles esculpidos.

La vida siempre es evidente y eterna en ellos.

*

Fermín Lopez Costero

in: (Memorial de las piedras,
Premio Joaquín Benito de Lucas 2008. Talavera de la Reina, 2009)


17 de maio de 2012

O sol agóchase no horizonte

(foto: carlos silva)

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O sol agóchase no horizonte
ti, ao lonxe.
Teño atravesados pensamentos de nubes
unha maré de romanticismo espertando
con arrecendo á
herba de namorar
saudade
bravura
salitre
todo unha tolemia de soños silvestres.

*

alba mendez


14 de maio de 2012

ALFABETO

(foto: carlos silva)
(cerâmica: josé teixeira)

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ALFABETO

Abelorios, ave (do Paraíso), arroz, Amelia, almofadas, alfaiate, Almada, améndoas,
Burbullas, Bicos, bágoas, Baixa, begonia, Brasileira, botánico, Byron, brancura,
Carmín, chapeus, charón, chá, chocolate, crisálidas, caixa
(de música), cenoura, cristal chinés, carruagem, cisne, cinema, chafariz,
De, Delmiro, dourados, Dalaiama, dozura,
Daniel, doa, dama, dinosauro, denosiña, dedal,
Ébano, Eduarde, elefante, encaixe, escadinhas, espiga, esgazar, esquío, El-Rei, espello,
Furna, fado, Fornelos, flor, fenicios, fibela, figueira, fentos, fascinio, folla
de lata,
Gatos, gancho, greve, gaiola, Gaxate, Guende, glícina,
Herbáceos, habitáculo, harmonía, hedreira, hélice,
helmo, hemisferio, hipopótamo, humidade,
Ilusións, idilio, Idade
(de Ouro), Ítaca, iniciático,
Lizgairo, liberdade, Lisboa, labirinto,
león, Lago, limón, lord, lícias,
Mulime, merenda, marfim, mitoloxía,
madeirame, Mouraría,
manuelino, María I, Marceneiro,
Noces, Narciso, niño, neve, noivado, navegantes, níveo, Norte,
Ouro, ollos, Olissipo, olor, Odeón, oso, ostra, oseira, océano,
Porcelana, plumas, pêssegos, passarinhos, periscopio, palmeira, paixón,
periquitos prateados, Páscoa, pau-santo, pegas, pombal, pessoa, paspallás,
Reloxo, Rossio, rumor, ruína, rúa, rinoceronte,
Seda, seis, sereas, stuff, Solamar, sémola, sésamo, Sintra,
Simbad, sebes, Sebastião, Strauss, suíza, Sur,
Teas, tritóns, té, tinta, tapiz, termas, tesoiras, trufas, Texo,
transparencia, tranvía, tear, traverso, tule,
Unicornios, unión, Ulises,
Vidros, variable, vivenda, veludo, verniz, visión,
velame,
Xiz, xabre, xesteira, xardín, xacinto, xade, xaneiro,
Zapateiro, zume, zugar, zoco, zócolo, zafiro.

*

Lucía Novas Garrido

*


11 de maio de 2012

La vida sigue en sueño

(foto: carlos silva)

***

La vida sigue en sueño

Signo o hambre abierta,
red, hemisferio, mitad
de mí, que soy en el ovalado
incendio
del azul que soy o mentira o nada.

Todo mira y yo impreciso
me adhiero a un manifiesto
ilimitado.

Ven desde tu octava circunstancia,
ven triangular, piramidal,
ven mientras el cielo sigue inmiscuyéndose
en mis recelos. Ven a mí ¡Oh, príncipe de Polonia!

 *

Agustín Calvo Galán

http://proyectodesvelos.blogspot.pt/


*


A vida continua em sonho

Sinal ou fome aberta,
rede, hemisfério, metade
de mim, que sou no ovalado
incêndio
do azul que sou ou mentira ou nada.

Tudo olha e eu impreciso
adiro a um manifesto
ilimitado.

Vem da tua oitava circunstância,
vem triangular, piramidal,
vem enquanto o céu continua a imiscuir-se
nos meus receios. Vem a mim ¡Oh, príncipe da Polónia!

 *
[trad: carlos silva]

8 de maio de 2012

o tronco

(foto: carlos silva)

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o tronco abatido, serrado pelos dedos que o desenharam num arabesco de cicatrizes concêntricas além daquele momento, espelho dos espelhos - ó, o rendilhado!.... - bate-me de chofre e suspende-me o seu desenho, que já iniciara: «era uma vez uma árvore de tronco rugoso e austero, que...»: não conta, não conta porque não sei: só suspeito. centenária? na parte fugitiva voaram corações desenhados por canivetes seguros por feitiços? e as folhas? como eram? talvez tão longíneas que, quando caíam, planavam nos olhos como passarolas e se um pintor montasse cavalete teria de alongar a perspectiva para captá-las em bando, na sua viagem de silêncios até ao fofo do chão, ao manto que se conta quando se fala na suave cama de folhas tenras (secas é uma palavra feia) que existe sob todas as árvores românticas.
isso: uma árvore romântica. que viu muito e nada conta, ou, porque o amor nunca prescreve e na sua doçura ameaça exércitos, então foi abatida, serrada, e ei-la despojo inadmissível como prova, já: os “gordinhos”, os corações desenhados e autografados com a violência das setas egoístas dos amantes, essas provas não circunstanciais e capazes de abalar um júri renitente em aceitar a culpabilidade histórica das cicatrizes concêntricas, esses documentos que são vivos além do pó porque a memória não tomba quando uma árvore cai, e evolaram-se do momento e deles não conta a foto, e eu reafirmo só o suspeito.

curioso momento este, esta anatomia fotográfica, este dissecar de ilusões, esta pantomina da realidade: calhe, e a foto foi captada além esquina e mercê de obras de requalificação, como costumam rezar as placas que se desdobram em explicações para justificar a morte d'algo. talvez fosse dum quintal particular e esta imagem é-me grata pois por trás visualizo uma casa que envelheceu namorando várias gerações, talvez um banco à sua sombra (a tal cama de folhas de regresso...), talvez mesmo um baloiço abandonado, toda uma pátine que resistiu até ao momento da placa e das obras de requalificação a matarem, e nos serrarem a memória. talvez nada disso, cala-te Carlos, não abuses da ficção: é um toco velho e podre, são os restos dos tempos, é o relógio parado, é a vida e um seu momento. talvez.

mas prefiro a minha ilusão. uma jangada. tábuas aladas. uma mesa tão gigantesca que se derrubaram muralhas dum castelo para introduzi-la no seu salão mais nobre e belo, ou, talvez (talvez) qualquer uso não discriminado e para aqui nada importante à excepção das suas sobras: o desperdício industrial que nas mãos duma criança faz um tronco de árvore pular e correr, e o mundo avançar com ele como se no poema, esta poesia tão sorridente como 'a sua' criança que da tábua de nada moldou um carrinho de rolamentos e desliza nuvens de imaginações à velocidade estonteante do seu amor infante, da sua fé na mestria da construção, quiçá e sem o saber sentada sobre um coração que alguém, da tal casa com história e que tem um banco sob os ramos que suportam um baloiço, e sobre tudo isso paira, secular, uma árvore, onde alguém antes dele desenhou e sem nada disto prever. gosto mais deste talvez.

gosto tanto dele que não me alongo, regresso ao retrato e pisco-lhe um olho cúmplice, matreiro, maroto: «á magana, o que tu viste...». e sorrio, sorrio pois. não remato dizendo que prefiro a ilusão à realidade, que do retrato do cepo duma árvore carunchosa construí um romance, castelos, carrinhos de rolamentos, e muito (muito) amor. tudo treta, meus amigos. e treta de quem o pensou: eu conheço-a, à arvore. ei-lo, o truque, a carta na manga, o segredo, a batota do narrador. conheço-a porque conheço-lhe o baloiço, corri que nem um doido no seu carrinho, namorei e namorei-lhe no seu colchão fofo (isso, isso), e também tive orgulho em possuir um fabuloso canivete. reconheci-a mal a olhei. depois foi fácil: fechar os olhos, sorrir e recordar...

foi assim... :-)

 *

Carlos Gil

http://nova-voz.blogspot.pt/

5 de maio de 2012

o timbre de um riacho segue assanhando a cabeleira das águas

 
(foto: carlos silva)

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o timbre de um riacho segue assanhando a cabeleira das águas
a vida em matéria se acumula nas margens como quem encosta
a cabeça para ouvir um instrumento molhado de sol

o dorso de um tronco se posta como ilha na cabeceira
faz-se palco para os pássaros que calam o canto e as asas
acalanto fluvial

há essa árvore que só é vista do mesmo modo como se vê a música

e há meus olhos, um par de seixos sob a paisagem

*
katyuscia carvalho

2 de maio de 2012

oh torres de poetas que o século abrasou

(foto: carlos silva)

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oh torres de poetas que o século abrasou
chorando por un día que nunca ha de volver
nun voo de voz aberta aos séculos vindeiros
virade nun afago de ventos regresade
na boca como orballo de cinza ou de silencio
con ánforas con días e tardes e camiños
con longas alamedas enchidas de paxaros
e dádeme o poema
dos troncos devalando no outono río abaixo

das vías que cursedes baixando un lento val
pois todo murcha e deixa sabor de hortensia escura
de imperios que caeron cidades derrubadas
ou melros embriagados
igual que un verbo vello en linguas esquecidas
gardade este transporte acaso esta ruína
os círculos deixados na terra polo voo
das épicas da vida das glorias da existencia

e longa e coidadosa mirada esparexede
os líquidos escuros con lenta inspiración
madeiras deliciosas as vides da ebriedade
enchidas co fulgor da sombra anoitecida
oh árbores tronzadas oh tallos do destino



*

Manuel Forcadela