26 de maio de 2012

cena 54

(foto: carlos silva)

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Todos os actos de amor são diferentes. Todos os actos variam.

Agora, finalmente, está tudo pronto. A claquete está pronta para a cena 54, take 1: aquilo que não é uma piscina (“E no início deste mês, o governo solicitou candidaturas de investidores interessados na compra de piscinas pertencentes a propriedades retiradas a Fannie Mae, Freddie Mac e à Administração Federal da Habitação”); aquilo que não é uma casa de campo com cavalos, uma cavalariça, uma casa de cavalos, mas sim um momento de cavalos (“en que la yerba / crece en la memoria”); aquilo que não é um templo em honra de Pliohippus, o primeiro cavalo, a comer folhas no Máximo Termal de Paleoceno-Eoceno e a ficar lentamente cada vez mais pequeno. O que vemos é um museu para um telhado. Ou será o telhado a fantasia perfeita, uma canção mesmo, para a resistência excêntrica do dois-por-quatro? O que estará do outro lado da sua inclinação, o que será a sua inclinação? Apenas outro tormento de disciplina. Tábuas de abrigo apoiadas por vergas, todas juntas para cantar pela sua ceia. Algumas adorariam flutuar num rio e aí se tornar madeira à deriva. O telhado intacto é composto pelas telhas do nosso descontentamento ou, antes, da nossa conveniência, colocadas numa fundação que é coroada por pedestais, as leis-base da justiça. O cavalo que não esteve lá sabe que o gesto do espanto – a boca aberta de Sócrates ou a boca falante de um cavalo – fará diferença na mudança do mundo, irá ditar o tempo.

“Ainda hoje a terra treme.”

Por outro lado, gostaria de aqui ficar, a trocar pontos de vista sobre esta meditação acerca da madeira, absorto no humilde e no abençoado, arrebatada pelo que é impossivelmente pitoresco. (Porque é que nos interessamos pela beleza quando os prazeres são uma imprudência da agonia?) Quem é que se está a convencer com este estádio do amor, da leitura entre as tábuas de um clube de cães tornadas monumento e os elementos que eu também gostaria de reconhecer e considerar? Mas eu nunca imaginei aquilo que é óbvio à medida que nos aproximamos da cena a preto e branco. Se não construirmos um farol devido à falta de um oceano, é apenas natural na terra, perto da hera e da madeira, quando a luz e a sombra de uma torre indigente traçam uma assinatura embelezada de alarmes – longe do doméstico, mas possuidora de qualidades inerentes que relembram habitações. Para o crime, a memória, uma história que “(aquí, ahora) no tiene sentido, no tiene destino.”. Poderíamos aprender com Kafka – nós podemos atravessar a porta e ver o que vem a seguir, por cima e por baixo das fundações de pedra, o vestibular santificado na luz do dia, ar fresco onde os cães ladraram. Assim o parece à nossa certeza…

Conseguem encontrar o… princípe sapo? A família dos esquilos? O poço da solidão? O mito da memória que permanece obscuro? Conseguem ver a dura etiqueta de um número que  levita? Já leram o Guia dos Perplexos de Maimonides? Era esta aparência desdentada de uma porta a entrada para as quatro paredes que rodeiam uma fonte ou, de uma forma igualmente preciosa, uma escola ou uma casa de culto para os escravos e seus filhos – tudo o que é exaltado para permanecer escondido? Eu irei, finalmente, transpor esta vedação, tal como Fontaine o fez da cela nr 107 no Forte Monteluc onde ele desmantelou a porta, tábua a tábua, e escapou! A guerra está no outro lado de todos nós.

A luz é tudo que existe.

A coup de foudre. (Um toque de trovão) Quando não há amor à primeira vista, lembramo-nos dos elementos (para os pensadores de Upanixade, o verdadeiro sacrifício do cavalo [aśvamedha] foi obtido através da percepção da identidade das partes deste sacrifício e do universo). As hierarquias são feias – elas são antigas. Mas também o é a liberdade. Porquê chamá-la de arruinada? Uma angústia deste tipo é demasiado recente. Chamamos-lhe uma imagem em movimento (em câmara lenta). Mas porque não chamar-lhe um edifício? Poderá estar correcto chamar-lhe útil. Se pensarmos nesta barraca baloiçante, mas elegantemente nobre, como uma morada para a arte, isso deve-se à sua beleza e inclinação, a sua inclinação para a frente, no seu desejo animal espelhado (recompensado através da polis arquitectural do Edifício Dançante em Praga) é como se fosse algo oracular, mas sem palavras – aquilo a que poderíamos chamar de espectacular. Do outro lado, por trás da antecâmara, seguindo o mito e história, encontra-se o templo da abóbada que não necessita de um telhado de telhas por direito: um local de casamento (“o que Deus uniu, o Homem não deve separar.”)

Quem diria que o prazer não é útil?

Pergunto-me se estarei a construir um monumento a partir de um destroço. Onde a madeira se move, deveria haver fogo. Mas eu imaginei o futuro à luz do passado. Isto é um edifício sem destino e não uma cabine abandonada sobre pernas partidas de pedra (duas pernas de pedra vastas e sem tronco / permanecem no deserto). Esta é a voz de um poço de solidão, templo para o que é constitucional, monumento ao vento, à chuva, ao sol. E se eu estiver certa, estou errada. E se eu estou errada…

Havia uma velha mulher
Que vivia num sapato.
Tinha tantos filhos
Que não sabia o que fazer.

Estas tábuas, conhecidas e estranhas, levantam o telhado. Não possuo nada. Alta como um animal, baixa como um animal: “Um cavalo é um cavalo, claro, claro. E ninguém pode falar com um cavalo, claro, a não ser que, claro, o cavalo, claro, seja o famoso Mr Ed!” Se menosprezamos o cavalo, fazemos mais do que nos relegar aos fantasmas, inquietos numa eternidade a caminhar pelas tábuas. Aqui está um registo de escape. Desejo olhar para o outro lado. Não posso olhar. Tenho de olhar. Tenho de ver aquilo que está mesmo à minha frente. Comparações de memória sobre o tempo na graça é o espaço do lugar.

Não é estranhamente invulgar que o local onde não me pude refugiar contribui para uma imagem na qual eu devo refugiar-me.

Como se eu soubesse que esta barraca que está a inclinar-se insistentemente para o lado oeste (ou estará a virar-se noutra direcção?) não é qualquer tipo de defesa para um poço de água de nascente, mas uma cavalariça de um cavalo em particular. Mas eu apenas sei que este local é do cavalo. “De acordo com uma história que tem sido transmitida, Deus criou o cavalo árabe a partir de uma mão-cheia de vento. Na tradição árabe, as éguas são mais estimadas que os machos e muito poetas cantaram os louvores destas “filhas do vento”.

Quando os nomes são ao acaso, arbitrários, contingentes para as tábuas das paredes da casa, para o cavalo, que podem ter sido abrigados dentro dela quando não era a casa de uma cria, quando, uma vez, a porta cabia e era própria, sob o charme, digamos, da ferradura, poderá haver um bordo – uma prancha até – onde a vida se inicia: a entrada para um mistério. Porque será que este telhado ainda está de pé? (qual o significado de tudo isto?) Paus e pedras podem quebrar os meus ossos, mas os nomes nunca hão-de me ferir.

Onde e quando chegarei eu, escaparei do choro e não me inclinarei sobre ti? Tento e falho ao atirar estes velhos sapatos quadrados, estas botas Prada com buracos relativamente mais pequenos do que as falhas na porta da estrutura inclinada, que manifestam orgulho, ignorância, pobreza, mistério, obscenidade ou curiosidade – estas botas são feitas de pele e não servem mais. Eu uso-as para honrar a perda da vida, e a morte é o valor extra do que elas me recordam. Pior, uma indulgência numa imperfeição estudada. E lamento pois não me sinto mais confortável nelas a maior parte do tempo. E torno-me um pouco perversa e uso-as quase sempre para que os buracos aumentem depressa e finalmente, espero, passem a parecer algo da natureza que não possa ser usado –  que possam deixar de ser usadas brevemente,  que possam ser inúteis. Susie, querida Susie, o que há de novo? Os gansos andam descalços porque não têm sapatos. Talvez eu me sinta forte ou certa o suficiente para dizer a mim própria, sem ritual ou revelação ou desastre natural: irei tremer nas minhas botas. Para que interessa, afinal de contas, um nome para estes: hipparions, cavalos ibéricos, mustangs, cães, cavalos das estepes, …

Ainda agora a terra está a tremer, disse um sobrevivente do tsunami, a sua cidade uma praia de erva onde apenas as casas maiores são carapaças, sombras do que eram anteriormente.

“Acredito mesmo que, tal como um animal, posso dirigir-me aos poderes que existem” - escrevi-o numa carta que nunca te enviei. Como é que nos libertamos do objectivo correlativo do choro a não ser ao renunciarmos à culpa estranhamente histórica e irremediável – ou será mitológica? – tendo tendência para a parede de marfim por baixo da vedação em cadeia no Oeste, a norte da floresta, sendo humildes como se fosse, dentro do suspiro, a oportunidade da vida? As filhas do vento recordam-nos que conseguimos voar. Esta casa de hóspedes de través, sem alicerces, é aquilo que troca os elementos sem um cavalo, sem uma fonte, e que nos repreende para que possamos esquecer para lembrar.


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susan pensak
(original aqui)

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[tradução: lurdes fonseca]

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