27 de janeiro de 2012

o rapaz diz que lhe mordeu o nariz

(foto: carlos silva)

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O rapaz diz que lhe mordeu o nariz
a mãe diz que ela só coaxa

porque não fazes sexo
com ela?

aí os olhos turvaram
o silêncio das ervas

o rapaz pôs- se
nela?


Aurelino Costa





23 de janeiro de 2012

a solidão dos cadeados

(foto: carlos silva)


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A solidão dos cadeados


Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Ana Cristina César


Um beijo pode recusar-se
a recriar o Big Bang original,
mas se a boca for injusta e o colóquio
terminar num naufrágio
não é tanto a expansão que conta,
nem o afastamento progressivo das galáxias
e dos mares, mas a neurocirurgia do acaso,
a autópsia do contacto acidental,
agora que ficamos despenteados
pelo predilecção, incapazes,
sem palavras, espantados
com o que ainda devemos
ao espanto,
a partir de quando a chave
deixou de abrir hipóteses irmãs,
pequenas apoteoses em conserva,
vidas fechadas ao público em geral?

Um cadeado guarda segredo quanto à sua inutilidade.
Prepara-se para servir de piercing
no sobrolho do tempo,
e oxidar.
13 ou 14 biliões de anos
é o tempo médio de cicatrização
quando aplicado no lábio, na língua ou no mamilo
do cansaço, e não sei quantos mais se os preferirmos
na fina cartilagem do erro,
ou na vulva misericordiosa da saudade.

Mas não nos alonguemos mais: há pequenas promessas
petrificadas no que resta da Pompeia portátil dos amantes.
Neoplasias lendárias do metal.

andré domingues



19 de janeiro de 2012

argolla

foto: carlos silva

ARGOLLA

Ayer horadó a su paso el suelo,
dejando un surco oxidado,
y hoy el desgaste
solo sabe hablar de ti.
La voluntad es una argolla
que cuelga del cuello de pocos.
Atado a la vida,
arrastrando su peso,
el presente es un puñado de piedras
que chocan al pisarlas,
se hunden en el camino
con su propia música
y su particular eco,
pero él solo quería ser poema.

Almudena Vidorreta Torres


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Argola

Ontem em seu caminho perfurou o solo,
deixando um sulco oxidado,
e agora o desgaste
só sabe falar de ti.
A vontade é uma argola
pendurada no pescoço de poucos.
Ligado à vida,
arrastando seu peso,
o presente é um punhado de pedras
que colidem ao pisá-las,
se afundam no caminho
com sua própria música
e seu eco particular
mas ele só queria ser um poema.


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[trad: cas]

16 de janeiro de 2012

o poema está em casa todo o dia

(foto: carlos silva)

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o poema está em casa todo o dia, é perfeitamente habitável,
todas as palavras comem do mesmo prato, com as bocas abertas,
as grandes bocas mastigando as verdades do mundo,
os alimentos centrifugando-se rapidamente, as mãos sujas quase
inexistentes, os dedos limpos às paredes, os cabelos no meio da sopa,
a sede gasta no chão de lavar a loiça, a pontuação à solta na água.
a casa está virada para dentro do sol, a luz não entra, a luz não
consegue entrar, o poema humedece de escuridão e tédio fechado
sobre a sua própria pedra, sobre os seus quatro muros de silêncio,
as pessoas passam por ele como cigarros que queimam devagar,
mas que acabam por extinguir-se no ar nocturno, os espíritos delas
é que o tapam durante o sono, e o espírito humano é que faz o
poema, coa as vírgulas, limpa a casa com a água de coar as vírgulas,
abre uma janela para uma ideia, organiza as palavras por turnos,
inventa-lhes um sexo, um rio, uma cerimónia digna do adeus, e
faz da morte um denso lençol de fumo que ondula sob a porta.


alice macedo campos

11 de janeiro de 2012

carta do anónimo - loire - alento irreversível

(foto: carlos silva)

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carta do anónimo - loire - alento irreversível -

1.
busquei abrigo - ante as fotos - de mapplethorpe - absorto na luz - a iminência do avassalador – súbito recordo - a solicitude do corpo - a película imóvel - a dissipar-se - devolução do excesso – toda a temeridade do elucidativo - o que trespassa - no silêncio - e se reflecte nos pulmões –

2.
a torre - o rumor do esparso - os cactos - cabeça na cal - nudez - loucura dos reflectores -
a náusea - mapas do submerso - azul hipnótico - ebriedade do prado - catástrofe do definitivo -

3.
quem entorpecido de visões - sob o jugo do irreparável - vislumbra o sofrido e o exaltante -
na iminência do desastre - retoma toda a temeridade do visível - o alento do irreversível -
pela inadvertida figura - do escasso - deixa entrever o oblíquo - o que assoma nas palavras -
e se inscreve no incólume - a ímpia luz - inextricável faca - rente às grades - da discórdia ? -

4.
a ávida correspondência do imune - sombra - branco - lâmpada – tristeza muda - voz do exasperado

5.
esperando até que o carteiro passe - reabsorvendo a ânsia - inexplicado pudor - do desespero -
redescobrindo a música e o ardor - a ostensiva carta de loire - a pólvora - que sobra do revólver - ágil -

6.
não me escrevas - deslumbra - torna tudo inclassificável - nítido e preciso - animal indefinível -

7.
deixa-me perpetuar - o diminuto - gume - o ímpeto da lâmina do sono - rente à terra húmida - levar de vencida - a constância da voz - a gaia ciência - na orla da noite - quietude da chama –
por sobre o orvalho - a mente - soçobrando - no encalço do convincente - vacuidade do ar - o dúctil -

alexandre teixeira mendes


6 de janeiro de 2012

Avisa, Natural de Avis

foto: carlos silva

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Avisa, Natural de Avis


Não aspirjam de cerejas a neve como se vivêssemos um natal razoável. Deixem o branco esplêndido com os seus esqueletos castanhos.

Assoma Eco o laboratório onde se investiga o marcador genético da psique. Mirando, em Praga, a cloaca da consciência, Eco compreende o seu rosto.
Em chegadas perseguintes, está inebriada quando arroja coisos ao desperdício, arraiolos que lavam a espuma. Os molhes onde está inscrita ponderam nanoplaquetas de mercúrio invisível. O tempo: uma dourada matinal no camarote endócrino.

A divindade muezzina-lhe o corpo: volta a obedecer, silencia as hormonas, retoma o incessante mito aparelhado. Aflita como uma catedral engolida, compôe uma partitícula sacrificial. Porém daí se levanta uma onda acústica suiçando o monoteico curso em que lhe é exigido irradiar.

A balsa de Minos não é ternária. A contemplação deriva do éter como se, em olhos, Eco pedisse uma esmola a Corinto na ignorância de um gato deprimido aderindo à maternidade das sarjetas.


alberto augusto miranda