(foto: carlos silva)
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o poema está em casa todo o dia, é perfeitamente habitável,
todas as palavras comem do mesmo prato, com as bocas abertas,
as grandes bocas mastigando as verdades do mundo,
os alimentos centrifugando-se rapidamente, as mãos sujas quase
inexistentes, os dedos limpos às paredes, os cabelos no meio da sopa,
a sede gasta no chão de lavar a loiça, a pontuação à solta na água.
a casa está virada para dentro do sol, a luz não entra, a luz não
consegue entrar, o poema humedece de escuridão e tédio fechado
sobre a sua própria pedra, sobre os seus quatro muros de silêncio,
as pessoas passam por ele como cigarros que queimam devagar,
mas que acabam por extinguir-se no ar nocturno, os espíritos delas
é que o tapam durante o sono, e o espírito humano é que faz o
poema, coa as vírgulas, limpa a casa com a água de coar as vírgulas,
abre uma janela para uma ideia, organiza as palavras por turnos,
inventa-lhes um sexo, um rio, uma cerimónia digna do adeus, e
faz da morte um denso lençol de fumo que ondula sob a porta.
alice macedo campos